Jogadores do Jiangsu Sunning erguem o troféu do Campeonato (Chinês Foto: AFP) |
Há quatro anos, a janela de transferências internacionais de janeiro se encerrava com uma intrusa entre as grandes ligas. No começo de 2017, a China superou a Premier League e todas as outras no mundo ao gastar € 388 milhões em contratações só naquele mês. Em 2021, tal valor está em apenas € 54 milhões. O cenário é outro.
Outrora visto como enorme mercado em potencial e promessa de salários milionários para os jogadores, o futebol chinês encontra-se numa encruzilhada. E vários fatores ajudam a explicá-la. Associados a grandes empresas do país, os clubes estão em situação complicada e afetados pelos impactos financeiros da pandemia do coronavírus. Há ainda relação conflituosa com o governo e suas regras. Um ambiente propício para provocar uma debandada de atletas, entre eles brasileiros.
Último campeão da Superliga Chinesa, o Jiangsu Suning anunciou no último dia de fevereiro que simplesmente encerraria as suas atividades. As dívidas do clube chegam a 500 million yuan (cerca de R$ 535 milhões). Dono do Jiangsu, o conglomerado que dava o sobrenome ao time da cidade de Nanquim não encontrou um comprador.
O grupo Suning adquiriu o Jiangsu em 2015. No ano seguinte, contratou o volante Ramires por € 32 milhões, transferência mais alta de um clube chinês até então. Poucos meses depois foi o atacante Alex Teixeira, por € 50 milhões, além do técnico italiano Fabio Capello.
Hoje a realidade é outra. As restrições impostas pelo governo chinês para controlar a disseminação do SARS-Cov-2 no país impactaram os negócios do conglomerado, que vai de tijolo e argamassa ao entretenimento. Os últimos investimentos não deram certo, e o Estado, que comprou 23% de suas operações recentemente, disse que o futebol não deveria ser mais prioridade.
– Nós vamos fechar e cortar negócios irrelevantes para o varejo sem hesitação – declarou o CEO do Suning, Zhang Jindong, em um vídeo para os funcionários do grupo divulgado em fevereiro.
O fechamento do Jiangsu é o principal retrato da decadência do futebol chinês. Ao todo, 16 clubes das três principais divisões entraram em colapso nos últimos 12 meses e foram desqualificados de competições por razões financeiras. Caso do Tianjin Quanjian, ex-clube do atacante Alexandre Pato, que decretou falência em maio passado.
A Associação Chinesa de Futebol (CFA) teve de estender a janela doméstica de transferências até o dia 26 de março, dada a crise financeira dos clubes da Superliga. O Tianjin Tigers, antes conhecido como Tianjin Teda, acumula 10 meses de salários atrasados. O Hebei FC também está à procura de novos investidores.
E os brasileiros que ficaram?
A primeira divisão chinesa conta atualmente com 30 brasileiros. Em meio a tantas indefinições e a pior onda de Covid-19 no Brasil, jogadores nascidos aqui que atuam na China ainda não sabem como, quando e se vão voltar ao país asiático. É o caso, por exemplo, de Renato Augusto, do Beijing Guoan, e Paulinho e Anderson Talisca, ambos do Guangzhou FC. Os três ainda não obtiveram liberação para voltar à China.
– Estou desde o início de janeiro tentando e não consigo ir. Cheguei abrir a possibilidade de ir sozinho, deixando minha família, e nem assim foi possível. É uma situação chata, mas sei que não é só comigo. Faço o que está ao meu alcance, que é trabalhar diariamente para manter minha forma e assim ganhar tempo quando puder me apresentar. Ainda não temos um calendário definitivo e nem tem como ter – contou o volante Paulinho, do Guangzhou FC, Evergrande.
O Campeonato Chinês de 2021 ainda não tem data para começar e formato definido.
O atacante Róger Guedes, do Shandong Luneng, negocia a rescisão com o clube de forma amigável. No momento ele também se encontra no Brasil, mantendo a forma física em Criciúma, sem perspectiva de retorno. O atacante chegou a entrar com uma ação na Fifa contra o Shandong, em setembro do ano passado, alegando atraso de salários.
A pendência com o jogador brasileiro foi resolvida, mas o campeão da Copa da China não pagou pelo licenciamento para a disputa da Champions League da Ásia e foi punido com a exclusão do torneio.
Agente de Róger e de Ricardo Goulart, além de Gabriel Jesus, Paulo Pitombeira diz que é cedo para falar em saída em massa de atletas do país. Mas vê em andamento uma mudança no mercado.
Não diria debandada, mas um movimento natural de renovação do mercado".
— Paulo Pitombeira, empresário de Róger Guedes e Ricardo Goulart
– Os brasileiros que estão lá elevaram o nível do futebol local, e para continuar evoluindo os chineses podem querer trocar um ou outro atleta, mas aqueles responsáveis pelo sucesso atual, como o Ricardo Goulart por exemplo, um ídolo que ganhou tudo por lá, voltou ao Brasil e foi repatriado por eles, vão continuar tendo espaço lá por muito tempo.
Ricardo Goulart é um dos cinco brasileiros naturalizados chineses, junto de Elkeson, Aloisio “Boi Bandido”, Alan Carvalho e Fernandinho. Para isso, eles precisaram renunciar à cidadania anterior e adotar um novo nome. Por enquanto, Elkeson e Aloísio, ou melhor, Ai Kesen e Luo Guofu, já estrearam pela seleção da China.
O atacante Alan Kardec também tenta deixar o Chonqing Lifan por causa de salários atrasados. Ele chegou a ficar nove meses sem receber. O clube dele corre o risco de ser mais um a encerrar as atividades antes do início da próxima temporada, previsto para o dia 3 de abril.
Dois jogadores brasileiros contratados por clubes chineses em 2021 evidenciam a mudança de estratégia das equipes do país: Erik, ex-Palmeiras e Botafogo, e Júnior Negão, campeão asiático no Ulsan. O ex-palmeirense estava no futebol japonês. Ambos foram para o Changchun. Negão a custo zero, e Erik por € 2,5 milhões.
A verdade é que o mercado do futebol chinês não vinha bem desde antes da pandemia. Mesmo com os investimentos do governo na economia nos últimos meses, as empresas que comandam os clubes, tanto da iniciativa privada quanto as públicas, já se viam obrigadas a reduzir custos. Principalmente dos salários dos atletas.
– O salário médio dos nossos melhores jogadores é 5,8 vezes superior ao dos atletas do campeonato japonês e 11,6 vezes superior ao do sul-coreano. São números alarmantes, como é que ainda não acordamos? – declarou o presidente da federação chinesa, Chen Xuyuan, em dezembro, em entrevista à agência Xinhua.
O ano de 2016 talvez tenha sido o mais significativo do movimento de clubes chineses no mercado internacional. O Guangzhou Evergrande pagou € 42 milhões para tirar o atacante Jackson Martínez do Atlético de Madrid – contratação mais cara daquela janela de inverno.
Segundo o sistema de transferências da Fifa (TMS), a liga chinesa foi a que mais investiu em 2016 de todo o mundo: US$ 451 milhões.
Em julho daquele ano, foi a vez de Hulk deixar o Zenit e ir para o Shanghai SIPG, por € 55,8 milhões. Em dezembro, Oscar assinou com o mesmo clube por € 60 milhões. Ainda houve o anúncio da chegada de Carlitos Tevez ao Shanghai Shenhua, para receber o maior salário do mundo no futebol (R$ 2,5 milhões por semana na época).
Das 10 compras mais altas do futebol chinês, cinco envolveram brasileiros.
Teto salarial e taxa da federação
Muitos dos grandes nomes foram embora, em consequência das medidas implementadas nos últimos anos pela Associação Chinesa de Futebol (CFA). Ela estabeleceu em meados de 2017 um imposto de 100% em transferências internacionais acima de € 5,9 milhões. O clube que ultrapassar essa barreira, tem de pagar o mesmo valor à CFA.
Na virada de 2019 para 2020, foi imposto um teto para salários anuais de jogadores, estrangeiros (3,3 milhões de dólares) e chineses (1,4 milhão de dólares). Além disso, veio o limite para cada clube de 60% dos gastos totais com esses vencimentos.
Há também casos de mudanças em barreiras internas dos clubes. O Lyon pediu 25 milhões de euros para negociar o volante Thiago Mendes ao Shandong Luneng, mas o lado chinês havia estipulado não gastar mais de 10 milhões de euros com ninguém.
– O Lyon pediu um valor acima do teto e o negócio não aconteceu. Esse tipo de situação pode ser mais normal agora. Vão adaptar também o nível de contratações – contou o agente Paulo Pitombeira.
Na passagem de 2020 para 2021, em meio à pandemia, a CFA determinou que os clubes de todas as divisões do país não podem mais ter referência aos patrocinadores em seus nomes. O objetivo da medida era dar uma identificação mais estável aos times, porque, segundo os dirigentes do futebol local, a mudança constante de proprietários dificultava a construção de uma cultura.
O Produto Interno Bruto (PIB) da China cresceu 2,3% em 2020. No ano anterior, o número tinha sido de 6,1%. Foi o pior registro em 40 anos.
Um exemplo do impacto dessas mudanças é o valor da contratação mais cara do futebol chinês para a temporada de 2021, até o momento: o meia colombiano Juan Quintero, ex-River Plate, por € 5,9 milhões.
Governo ainda prioriza o futebol
Apesar da crise atual dos clubes da Superliga, o Partido Comunista da China (PCC) ainda trata o futebol como prioridade. No final de 2014, o presidente Xi Jinping, havia declarado que o país seria uma potência do esporte até 2050. A questão é como isso será feito de agora em diante.
– O futebol na China é parte de um projeto nacional, um planejamento de política pública. Houve um incentivo político muito grande para que os clubes crescessem. Isso se traduziu num apoio muito grande de empresas e do governo chinês aos clubes, mas acabou criando uma bolha especulativa. E essa bolha está começando a estourar – comentou o professor Maurício Santoro, chefe do departamento de Relações Internacionais da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
Santoro explica que no modelo econômico chinês, mesmo quando a empresa é 100% privada, há uma proximidade muito grande com o governo. E se o Estado definiu uma mudança de rumo, as companhias vão procurar se adequar a isso. A diretriz agora é que os clubes não podem depender tanto das grandes injeções de recursos das empresas.
Por outro lado, o governo continua com os investimentos bilionários em centros de treinamento e no futebol de base, de forma geral. O objetivo do PCC é ter 135,7 mil campos até 2030. Técnico campeão mundial sub-17 com o Brasil em 2019, Guilherme Dalla Déa foi contratado pelo Guangzhou para liderar um projeto de reformulação do departamento amador.
O clube conta com um imenso centro de treinamento, com mais de 40 campos e em torno de mil alunos. Dalla Déa levou consigo boa parte da sua comissão e reitera que, por contrato, sua missão é também formar novos técnicos e profissionais de futebol para a China.
– Isso está dentro do nosso contrato. Além de desenvolver atletas, a gente também tem que desenvolver profissionais, tanto na parte física e técnica, até treinamento de goleiros e fisioterapia. Vejo na preparação física e preparação de goleiros que eles precisam melhorar muito. Como integrar parte física e fisioterapia. estamos trazendo um departamento de saúde para cá explicou – Guilherme Dalla Déa.
Lançado em 2016, o Plano de Desenvolvimento do Futebol Chinês prevê que a seleção se torne campeã asiática até 2030 (o país será sede da próxima edição, em 2023), e depois conquiste a Copa do Mundo até 2050. O país também pretende receber o Mundial. A única participação da China até agora em Copas foi em 2002 – inclusive encarando o Brasil –, sendo eliminada na primeira fase sem marcar nenhum gol.
Por Daniel Mundim e Rodrigo Lois
GE Rio de Janeiro
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