O Real Estelí figura entre as potências do futebol na Nicarágua. Neste final de semana, porém, a realidade sem precedentes gerada pela COVID-19 permitiu aos alvirrubros uma proeminência muito além das fronteiras: o clube faturou o Torneio Clausura do Campeonato Nicaraguense, repercutindo ao redor do mundo. O 18° título do ‘Tren del Norte’ é especial não apenas por firmar o tri nacional. Também é um raríssimo troféu entregue em meio à pandemia, em uma liga que não paralisou suas atividades por conta da crise sanitária. E o futebol no país diz muito mais sobre a postura desumana do governo local diante do coronavírus.
Alguns outros campeões foram coroados já quando boa parte do mundo estabelecia seu isolamento. A Super League da Índia realizou sua finalíssima em 14 de março, sem público, optando pelos portões fechados em vez de adiar o único compromisso que restava. Já no Tadjiquistão, um dos países que mantém o negacionismo em relação à pandemia, a supercopa ocorreu em 4 de abril – também sem torcedores presentes no estádio. Diferentemente dessas outras competições, o Campeonato Nicaraguense continuou a todo vapor por dois meses durante a crise sanitária, até que o desfecho ocorresse no último sábado.
A Nicarágua costuma ocupar as últimas posições nos rankings internacionais de democracia e liberdade. Ainda assim, o que ocorreu no país nestas últimas semanas beira o surreal. Presidente desde 2007, em sua segunda passagem pelo poder, Daniel Ortega possui um histórico de autoritarismo e represálias contra opositores, em meio a um contexto de crise social e econômica. Como se não bastasse, durante o início da pandemia, o governante simplesmente desapareceu dos eventos públicos. Seus aliados no regime mantinham um discurso de que a população não deveria se preocupar e apresentavam números baixos de casos positivos da COVID-19, embora houvessem claros sinais de negligência. Assim, o futebol era mais uma atividade a seguir em frente.
O Campeonato Nicaraguense fechou seus portões ao público, mas muitas das medidas de proteção eram tomadas pelos próprios elencos. À frente de agremiações que dependem basicamente do dinheiro estatal, nove dos dez presidentes da primeira divisão votaram pela continuidade da liga nacional – contra a vontade dos jogadores, sendo que alguns até tentaram atuar usando máscaras. Sem a compaixão dos dirigentes e das autoridades, a maneira foi seguir jogando mesmo com o natural receio. Dentro de campo e nos vestiários, conforme fosse possível, as equipes mantinham suas regras de distanciamento social e de prevenção.
“A situação é temerosa. Confesso que tenho muito medo do que estamos passando. Meu clube votou para que o campeonato fosse paralisado, mas fomos voto vencido, então seguimos trabalhando, mantendo as medidas necessárias de higiene e restrição”, declarou Flávio da Silva, treinador do Diriangén, em entrevista ao jornal O Globo em meados de abril. “Comando o treino de manhã, tomo as medidas de higiene e só saio na rua quando é muito necessário. Muitas pessoas estão adotando isso, independente das medidas do governo”.
Segundo o jornal La Prensa, o principal da Nicarágua, a maioria dos jogadores da liga preferia parar suas atividades. Porém, pouquíssimos expressaram o desejo publicamente. Apesar do medo de contágio, pesava o receio das represálias dos dirigentes. Os atletas do Walter Ferretti, por exemplo, se reuniram com parte da direção para expor suas preocupações com a doença. Tiveram respostas nada compreensivas. “Os dirigentes foram claros: quem não quiser treinar ou jogar, pode passar no escritório e assinar sua demissão. Deixe seu trabalho ou o faça e fique atento com a vida de sua família”, declarou um dos presentes. “Só podemos orar para que o vírus não se expanda e não nos contagiemos”.
Paralelamente, Daniel Ortega ressurgiu apenas em 15 de abril, mais de um mês após o início de seu sumiço. Disse que a COVID-19 foi um “sinal de Deus” e que “não há força alguma que possa bloquear o vírus”, lavando suas mãos àquilo que realmente poderia ser feito. O presidente manteve a postura negligente de seu governo em relação à pandemia – autoritário na repressão à população, mas frouxo quando se necessita. No máximo, decretou um “recesso religioso” de duas semanas em abril, quando a própria Igreja Católica desencorajava os fiéis de participarem dos ritos de Páscoa.
Os números baixos de casos na Nicarágua permanecem, mas sem transmitir qualquer credibilidade, considerando a falta de medidas efetivas de proteção ou de distanciamento social. Até o início dessa semana, o país registrou oficialmente 16 infectados com o coronavírus e cinco vítimas fatais – algo pouco crível, diante dos 1,9 mil testes positivos na vizinha Honduras e outros 800 na também fronteiriça Costa Rica. Os casos suspeitos entre os nicaraguenses chegam às centenas e também há denúncias de profissionais da saúde forçados a mudar a causa de morte de seus pacientes para uma “pneumonia atípica”.
Obviamente, parar o futebol nem estava em pauta, por mais que o Campeonato Nicaraguense fosse um dos raros setores da sociedade a evitar aglomerações por sua própria conta. A fase de classificação do Clausura se encerrou em 18 de abril – logo após a reaparição de Ortega. Seis equipes avançaram aos mata-matas, com mais oito partidas a se realizar. Os dois primeiros colocados, Managua e Real Estelí, ganharam uma “folga” até o início das semifinais. Embora não fosse a situação ideal, ao menos a redução no fluxo de jogos diminuía os riscos à maioria dos jogadores. Foi assim que o torneio chegou ao seu desfecho neste final de semana.
Diriangén e Walter Ferretti avançaram na repescagem inicial, equivalente às quartas de final. Encararam Managua e Real Estelí nas semifinais, com a classificação de ambos os times que ficaram no chapéu. Já na decisão, a quarta consecutiva entre os dois clubes, o Real Estelí se impôs contra o Managua e garantiu seu terceiro título seguido. O empate por 1 a 1 em casa não impediu o Tren del Norte de assegurar o troféu fora. Na capital, os alvirrubros arrancaram o triunfo por 3 a 1. Manuel Rosas, Brandon Ayerdis e Marlon López marcaram os gols dos visitantes, enquanto Carlos Felix descontou aos anfitriões no fim.
Antes da partida, a federação nicaraguense publicou um comunicado anunciando medidas excepcionais para a entrega do troféu. De fato, apenas o capitão do Real Estelí recebeu a taça. Todavia, a comemoração pouco se importaria com as recomendações. Jogadores e comissão técnica festejaram abraçados, enquanto a imprensa também não se preocupou em usar máscaras. Além disso, parte das torcidas organizadas se reuniu para assistir ao jogo, com suas próprias aglomerações longe das arquibancadas. O fim do Clausura, ao menos, evitará mais riscos a um país que não sabe realmente a gravidade de seu problema.
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