Ruan Pétrick denunciou dirigente do Santos por abuso sexual. Renato Pizzutto |
Seguir os passos do conterrâneo Paulo Henrique Ganso e trilhar o caminho bem-sucedido de Neymar. Foi com esse pensamento que Ruan Pétrick Aguiar de Carvalho saiu de casa aos 10 anos, em Marabá, no interior paraense, para embarcar rumo a São Paulo com um time amador. Mas, ao contrário do que sempre sonhou, seu nome não ganharia o noticiário como mais uma história em que o menino pobre alcança o estrelato da bola. Na última semana, ele procurou a polícia para registrar queixa contra Ricardo Marco Crivelli, o Lica, coordenador das categorias de base do Santos Futebol Clube, por abuso sexual. Lica nega a acusação, mas a Delegacia de Repressão e Combate à Pedofilia na capital paulista abriu inquérito para investigar o caso.
De acordo com o boletim de ocorrência, o abuso teria ocorrido em 2010. Com 11 anos, Ruan estava sem clube após treinar na Portuguesa Santista e conheceu Crivelli no alojamento onde morava em São Paulo. Segundo depoimento à polícia, Lica, que até então atuava como observador técnico do Santos, teria acariciado seu corpo e praticado sexo oral com ele durante uma noite. “O cara prometeu que me levaria pra jogar no Santos. Depois de algumas semanas, eu fui chamado para entrar no clube”, conta Ruan ao EL PAÍS.
Ele ficou na base do Santos por um ano e meio. Ao longo desse tempo, conviveu com chacotas de companheiros de time, que tripudiavam de sua proximidade com o dirigente. Ruan relata que, prestes a subir de categoria, Lica o convidou para dormir em seu apartamento, mas ele recusou. A partir de então, não teve mais oportunidades no time santista e acabou dispensado. “Foi uma frustração muito grande”, diz, enquanto ajeita o boné sobre a cabeça. “Meu sonho era jogar no Santos. E tudo acabou dessa maneira.”
O garoto havia sido apresentado a Lica por intermédio de Ronildo Borges de Souza, conhecido como Batata, olheiro que levava atletas do Norte do país para São Paulo, com quem ele morou por um período. Ruan diz que também chegou a ser assediado por Ronildo, que foi preso há dois anos em um casebre onde abrigava 11 adolescentes e condenado por estelionato, exploração sexual e cárcere privado.
Ruan acostumou-se a viver longe de casa. A mãe o abandonou muito cedo. Foi criado pelo pai, que tem outros 13 filhos e acompanhava à distância sua aventura pelo futebol. Após a dispensa no Santos, ele rodou por times menores, mas nunca se firmou. Atuou por Red Bull Brasil, Paraná Clube e até pelo Suryoye Paderborn, da quinta divisão alemã. Seu desempenho em campo, entretanto, não apresentava evolução. “Por tudo que passei nos tempos de Santos, eu fiquei meio revoltado. Só queria esquecer e continuar jogando futebol, mas não consegui. O abuso que eu sofri mexeu com minha cabeça. Virei outra pessoa.” No ano passado, esteve na base do Santa Cruz, de Recife. Novamente sem sucesso, decidiu rever a família depois de três anos ausente de Marabá. “Fiz um monte de besteira. Bati o carro do meu irmão, me envolvi com coisa errada e bebia bastante. Não era o rumo que eu queria para minha vida.”
Resolveu recorrer no início deste ano à ajuda de Luciano Pereira, um agente do Pará que conhecera jogando futebol em São Paulo. Arrumou as malas outra vez ao saber que o empresário havia aberto uma porta para ele voltar ao Santos. “Minha alegria durou pouco”, diz Ruan, lembrando o momento em que Pereira revelou que Ricardo Crivelli tinha assumido o comando da base santista e seria o responsável por promover seu retorno. “Em vez de sorrir, ele ficou paralisado quando contei sobre o Lica”, afirma o agente. Ruan se recusava a voltar ao Santos, o que, segundo Pereira, o deixou ressabiado. Só então o jogador confidenciou que “tinha acontecido alguma coisa errada” entre Lica e ele anos atrás.
A denúncia de abuso sexual contra um homem forte da diretoria estremeceu os bastidores do Santos. Surge no momento em que uma ala de oposição pede o impeachment do presidente José Carlos Peres, eleito no fim de 2017, após descobrir que o mandatário é sócio de Ricardo Crivelli em uma empresa de agenciamento de atletas. Ruan diz que ganhava 1.000 reais como jogador da base – 700 pagos pelo Santos e outros 300 desembolsados pela sociedade de Peres e Lica. Na última quinta-feira, em entrevista coletiva, o presidente santista negou ter feito pagamentos a Ruan e argumentou que a empresa em questão está inativa.
Uma semana depois de tomar conhecimento da suspeita contra Lica, o Santos decidiu afastar o coordenador do cargo. A denúncia à polícia já havia sido revelada pela Folha de S. Paulo. Embora afirme que tenha sido duro com Lica ao cobrar explicações, Peres insinuou que a queixa de Ruan esteja sendo utilizada por adversários políticos para fragilizar sua gestão e alertou para que não se transforme a suspeita em uma “nova Escola Base”, em referência ao casal que dirigia um colégio particular em São Paulo e foi acusado de molestar alunos, mas acabou inocentado pela Justiça.
Lica ainda não se pronunciou. De acordo com seu advogado, Adriano Vanni, que já lidou com outro caso midiático envolvendo denúncias de abuso sexual – o do médico Roger Abdelmassih, condenado a 181 anos de prisão por estupro de 37 pacientes –, o dirigente afastado do Santos rechaça com veemência a hipótese de ter abusado de Ruan. “Ele trabalha há muitos anos com garotos e nunca teve uma mácula na carreira. Confiamos na investigação policial. É questão de tempo para a verdade vir à tona.” Lica deve ser ouvido nas próximas semanas pela Delegacia de Repressão e Combate à Pedofilia, que, além de investigar a acusação de abuso e o suposto vínculo entre Lica e Ronildo de Souza, já colheu o depoimento de uma testemunha que também alega ter sido assediada por Crivelli no mesmo alojamento de Ruan.
Crianças desprotegidas no futebol
O Santos é um dos mais tradicionais celeiros de jogadores da América do Sul. Já revelou craques como Pelé, Robinho e Neymar, que ajudaram a moldar a fama dos “Meninos da Vila”, como são conhecidos os garotos formados no Peixe. Ricardo Crivelli, que já havia prestado serviços a clubes como Portuguesa e São Paulo, chegou à base santista em 2008 por indicação de José Carlos Peres, que na época era apenas superintendente do clube. Bancado pelo Santos, viajava aos lugares mais remotos para realizar peneiras à procura de novos talentos. O fato de ter garimpado nomes como o atacante Gabriel Barbosa, o Gabigol, e os laterais Alex Sandro e Danilo, que hoje jogam na Europa, garantiu ao olheiro prestígio e autonomia no trabalho com os garotos.
Sonia Roman, psicóloga do Santos por mais de uma década, afirma que nunca recebeu queixas de abuso sexual contra Lica ou qualquer profissional da base durante sua passagem pelo clube, que durou até 2010. Porém, ela conta que sempre suspeitou da atuação de abusadores no entorno de meninos que chegavam de vários cantos do país para testes. A maioria deles, assim como Ruan, vivia em casas, alojamentos e pensões próximas ao clube. Roman visitava com frequência essas concentrações em busca de pistas que pudessem indicar um possível aliciamento por parte de técnicos, olheiros e empresários. Mas jamais conseguiu romper barreiras que vão além dos portões do clube.
“O foco da minha apuração era fora do Santos”, diz a psicóloga. “Eu tinha uma relação aberta com os garotos e perguntava: ‘Alguém passou a mão em você?’. Mas eles não entregavam. O futebol é um ambiente que não proporciona diálogo. Há uma hierarquia muito rígida dos mais velhos para os mais novos. E os meninos têm medo de confrontá-la.”
Ruan revela ao EL PAÍS que uma profissional do clube, logo em seus primeiros dias na base do Santos, chegou a questionar se ele já havia sofrido assédio sexual. Mas ele teve medo de contar sobre a suposta investida de Lica. “Achava que, se eu falasse a verdade, minha carreira no futebol poderia ser prejudicada.” Depois, quando já não jogava mais no Santos, o motivo para manter o silêncio era outro. “Nunca contei a ninguém sobre o que aconteceu, nem para o pastor da minha igreja. Eu sentia vergonha e até um pouco de culpa. Por isso tinha certeza de que esse segredo ia morrer comigo.”
Para Sonia Roman, a falta de um protocolo de prevenção e combate ao abuso sexual nas categorias de base coloca em perigo crianças e adolescentes, sobretudo aqueles que vivem longe de suas famílias em nome do sonho de se tornar jogador. “Não é só no Santos”, ressalta a psicóloga. “Abusadores e pedófilos estão em todo lugar que abrigue vítimas potenciais. E o futebol, um meio em que o tema do abuso sexual é tabu, atrai muitos deles. Os clubes deveriam ter um plano de ação não só para acompanhar de perto o trabalho de profissionais que lidam com crianças, mas também para alertar pais e jogadores sobre os riscos desse ambiente.”
Em 2014, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) assinou um pacto com o Congresso Nacional em que se comprometia a adotar 10 medidas para combater o abuso sexual nas categorias de base. No entanto, a entidade ainda não colocou em prática a maioria das providências sugeridas pela CPI da Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. Recentemente, na Argentina, denúncias de abuso de jovens atletas do Independiente e River Plate fizeram com que o parlamento local convocasse a Associação do Futebol Argentino (AFA) e os clubes para a elaboração de um protocolo de proteção infantojuvenil.
Na entrevista concedida esta semana, José Carlos Peres assegurou que o Santos abriu uma sindicância interna para apurar a denúncia de abuso sexual. Também implorou para que a “marca Meninos da Vila” seja respeitada. Ruan, por sua vez, se diz decepcionado com o clube. Segundo seu advogado, Marcello Monteiro, a equipe santista não ofereceu amparo psicológico nem auxílio jurídico ao ex-atleta da base. “Minha intenção não é prejudicar o Santos”, afirma Ruan. “Só denunciei depois de tanto tempo porque não queria que ele [Lica] fizesse isso de novo comigo ou com outro jogador. Eu não podia mais ficar calado.”
Hoje, aos 19 anos, Ruan Pétrick busca um novo clube para tentar retomar a trajetória nos gramados. Atacante que joga pelas pontas, tal qual Neymar, que despontava na equipe profissional do Peixe enquanto ele integrava as categorias de base, tem mais esperança de vingar no futebol após romper o silêncio tido como seu maior adversário nos últimos anos. “O que eu sei fazer é jogar bola. Vou continuar tentando. Mas agora me sinto bem melhor, aliviado. Recebi mensagens de muita gente me apoiando. Sei que algumas pessoas já sofreram coisa pior, foram abusadas pelo pai, pelo irmão. Isso é triste demais. Espero que meu exemplo ajude a dar coragem para que outros também denunciem.”
Projeto de lei quer condicionar patrocínios no futebol a ações de combate ao abuso sexual
No próximo dia 15 de maio, a Câmara dos Deputados realizará audiência pública em Brasília para debater o projeto de lei apresentado pela deputada Érika Kokay (PT-DF), que pretende condicionar o patrocínio de bancos públicos aos clubes de futebol a contrapartidas sociais para a proteção de crianças e adolescentes nas categorias de base. O Santos, por exemplo, recebeu aproximadamente 15 milhões de reais anuais da Caixa Econômica Federal nas últimas temporadas. Caso o projeto seja aprovado, as equipes teriam de cumprir medidas de combate ao abuso sexual de jogadores.
“É sabido que grande parte dos clubes brasileiros é patrocinada por bancos públicos. Como a CBF não cumpriu as principais recomendações da CPI, crianças continuam sofrendo abusos em escolinhas e categorias de base”, afirma Kokay. O deputado Roberto Alves (PRB-SP) é o relator da proposta, que está sendo apreciada pela Comissão de Esportes da Câmara. “O abuso sexual no esporte é uma realidade”, diz Alves. “Lamentavelmente, as autoridades do futebol e os clubes não agiram com a devida seriedade no sentido de erradicar esse mal. É preciso não só punir quem pratica o abuso, mas dar atendimento psicológico à vítima. Esse trabalho precisa ser feito pelo clube, que vai tirar proveito financeiro do talento da criança.”
Projeto de lei quer condicionar patrocínios no futebol a ações de combate ao abuso sexual
No próximo dia 15 de maio, a Câmara dos Deputados realizará audiência pública em Brasília para debater o projeto de lei apresentado pela deputada Érika Kokay (PT-DF), que pretende condicionar o patrocínio de bancos públicos aos clubes de futebol a contrapartidas sociais para a proteção de crianças e adolescentes nas categorias de base. O Santos, por exemplo, recebeu aproximadamente 15 milhões de reais anuais da Caixa Econômica Federal nas últimas temporadas. Caso o projeto seja aprovado, as equipes teriam de cumprir medidas de combate ao abuso sexual de jogadores.
“É sabido que grande parte dos clubes brasileiros é patrocinada por bancos públicos. Como a CBF não cumpriu as principais recomendações da CPI, crianças continuam sofrendo abusos em escolinhas e categorias de base”, afirma Kokay. O deputado Roberto Alves (PRB-SP) é o relator da proposta, que está sendo apreciada pela Comissão de Esportes da Câmara. “O abuso sexual no esporte é uma realidade”, diz Alves. “Lamentavelmente, as autoridades do futebol e os clubes não agiram com a devida seriedade no sentido de erradicar esse mal. É preciso não só punir quem pratica o abuso, mas dar atendimento psicológico à vítima. Esse trabalho precisa ser feito pelo clube, que vai tirar proveito financeiro do talento da criança.”
EL País
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